Continuidades de Médici em relação a Costa e Silva

Assim como já ocorrera com Costa e Silva (1967-1969), a política externa de Médici “deu continuidade à diplomacia voltada para o desenvolvimento e rejeitou o conceito de interdependência” (Doratioto), o que ressoa alguns elementos da antiga Política Externa Independente (PEI). A segurança econômica coletiva, que tem suas raízes no governo anterior, consagra-se como elemento central que integrava as agendas de economia, segurança e política externa, em meio ao momento de “milagre econômico”, o que fica evidente na proposta brasileira, em 1970, de substituição da estratégia de estabilidade por uma “estratégia dinâmica de desenvolvimento” para a Segunda Década de Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU). Esse movimento fica conhecido como “Diplomacia do Interesse Nacional”.

No que diz respeito ao relacionamento com os Estados Unidos (EUA), também foi marcado pelo não alinhamento automático e por uma “rivalidade emergente”. O combate ao comunismo era um dos fatores de proximidade, e foi assinado acordo de cooperação para usos civis da energia nuclear, que permitirá a construção, pela companhia norte-americana Westinghouse, de uma usina nuclear em Angra dos Reis, futura Angra I, sem transferência de tecnologia para o País; mas houve pontos de tensão, como a declaração, em março de 1970, de ampliação do mar territorial para 200 milhas náuticas. Em 1972, Brasil e EUA assinam acordo sobre a pesca de camarão. Há, também, o lançamento de um “Novo Diálogo” com a América Latina por parte dos EUA, em 1973, como uma proposta de Kissinger, em substituição à Aliança para o Progresso. O Brasil reage com pragmatismo à proposta, entendendo que poderiam advir benefícios, porém isso não mudaria a relação da região com os EUA.

Multilateralmente, o Brasil seguiu sem manifestar seu apoio ao Tratado de Não Proliferação das Armas Nucleares (TNP) – e é no governo Médici que Araújo Castro torna conhecida sua reflexão sobre o “congelamento do poder mundial” – e buscou exercer posição de liderança de países em desenvolvimento na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano (Estocolmo, 1972).

Na “questão das hidrelétricas”, com base nos trabalhos de comissão mista que operou durante o governo Costa e Silva, em 1970, a Eletrobrás e a Ande (Paraguai) assinaram convênio para estudo de viabilidade do desvio do rio Paraná, de modo a permitir a construção da barragem da hidrelétrica; e três anos depois foi assinado o Tratado de Itaipu. Em seu governo, entra em vigor o Tratado da Bacia do Prata, assinado no governo Costa e Silva.

Descontinuidades de Médici em relação a Costa e Silva

O projeto de “Brasil potência” e o interesse de reconhecimento do Brasil como potência emergente descontinuam a estratégia mais “terceiro-mundista” de Costa e Silva. Diferentemente da política externa de Costa e Silva, privilegiava o eixo bilateral de relações. O Brasil, que exerceu mandato de membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) em 1967-1968, inicia no governo Médici um longo período de afastamento do órgão, embora tenha seguido engajado em outras instâncias da ONU, sendo reeleito para o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC).

A diplomacia do “interesse nacional” de Médici, ancorada em um projeto de “Brasil potência”, causava certa desconfiança entre os vizinhos, como revela também a preocupação com eventual papel “subimperialista” exercido pelo Brasil na América do Sul, amplificada pela declaração de Nixon de que “para onde for o Brasil, irá o resto da América Latina”, durante a visita de Médici em 1971, na qual também foi acordado mecanismo de consulta de alto nível. Cervo e Bueno classificarão o relacionamento com a região naquele governo como “contraditório”, que contrasta com o latino-americanismo mais presente na administração Costa e Silva, quando se assina o Tratado da Bacia do Prata e quando é aprovado o Consenso de Viña del Mar. O chanceler Gibson Barboza teve outra visão a respeito, afirmando, entre as linhas mestras de sua política externa, “o relacionamento o mais estreito possível com os países em desenvolvimento, com atenção prioritária para nossa esfera de ação natural, que é a América Latina, e abrindo nesta uma nova fronteira, a América Central, até então nunca sequer visitada por um ministro das Relações Exteriores do Brasil”. Ele visitou Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua e Costa Rica em julho de 1971.

No relacionamento com o mundo em desenvolvimento, ainda que permaneça a coliderança brasileira e indiana do G77, a atuação brasileira é menos incisiva nesse foro, embora tenha-se obtido, como conquista, a institucionalização do Sistema Geral de Preferências (SGP) em 1971, o qual foi concebido na II Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, na sigla em inglês) na capital indiana três anos antes, e embora o Brasil tenha sido um dos fundadores do G24 no âmbito do G77.

Em 1973, o Brasil reconheceu oficialmente a República Democrática da Alemanha (RDA).

Com o objetivo de uma maior aproximação com os países do Oriente Médio, mas ainda dentro do conceito de “equidistância” do Brasil em relação ao conflito árabe-israelense, o chanceler Gibson Barboza visita o Egito e, após passagem pelo Quênia, vai a Israel. Logo depois, o Brasil cria Embaixada em Trípoli, na Líbia, e estabelece relações diplomáticas plenas com a Arábia Saudita, por ocasião da visita do chanceler saudita, Omar Sakkaf, ao Brasil. A partir do final do governo Médici, o Brasil assume nova retórica com relação à questão israelo-palestina, em bases que foram consideradas nacionalistas e pragmáticas por parte da literatura, dados os imperativos econômicos derivados do Choque do Petróleo (1973) e posteriormente da implementação do II PND (petróleo e petrodólares). Também naquele momento interessava ao Brasil o apoio dos países árabes e de maioria muçulmana nas discussões sobre a “questão das hidrelétricas”, na ONU, assim como esses países viriam a tornar-se mercado importante para a indústria armamentista e bélica brasileira. Outros episódios importantes do período nesse contexto são o acompanhamento atento da Guerra do Yom Kippur e a defesa das fronteiras pré-1967 conforme a Resolução 242 e da retirada de Israel das áreas ocupadas na Guerra dos Seis Dias.

Relações com a Argentina e o tratamento da “questão das hidrelétricas”

A chamada “Revolução Argentina”, período no qual o país esteve sob governos militares entre 1966 e 1973, se subdivide em dois momentos. De início, sob o general Juan Onganía (1966-1970), a Argentina esteve sob dependência mais acentuada em relação aos EUA e isolada regionalmente; depois, sob os generais Roberto Levingston (1970-1971) e Alejandro Lanusse (1971-1973), houve a contemplação de uma afirmação autonomista, com reaproximação aos vizinhos latino-americanos e aprofundamento das relações econômicas e comerciais com o Leste Europeu. O alinhamento argentino aos EUA não deixava de ter seus condicionamentos: de um lado, houve abertura econômica e defesa da liberalização comercial internacional; de outro, a Argentina distanciou-se em temas estratégicos, como cooperação nuclear e o TNP, ao qual apenas concluiria seu processo de ratificação na década de 1990.

O Brasil, por sua vez, voltava a praticar, de forma gradual, preceitos e princípios da PEI, como independência e terceiro-mundismo, já no governo de Costa e Silva. Ademais, o afastamento político com a Argentina se daria também por conta de disputas geopolíticas no âmbito sul-americano, iniciadas já em 1966, quando da assinatura da Ata das Cataratas, para aproveitamento do potencial hídrico do Rio Paraná com o Paraguai, na chamada “diplomacia das cataratas”.

Se a divergência sobre o aproveitamento hidrelétrico dos rios internacionais de curso sucessivo na bacia do Prata já havia sido resolvida com o Paraguai, a Argentina buscou disseminar, em diversos foros regionais e multilaterais, a tese de que, como recorda Ricupero, “nos rios internacionais de curso sucessivo, os ribeirinhos de montante estão obrigados à consulta prévia aos de jusante antes de poder encetar obras que possam provocar prejuízo águas abaixo. Conseguiu vitórias expressivas, como a aprovação em dois anos sucessivos na Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) do princípio da consulta prévia com efeito suspensivo. A essa tese, contrapunha o Brasil o argumento de que todo país possuía o direito de aproveitar seus recursos naturais sem ficar sujeito a demoras excessivas de parte de vizinhos, desde que não lhes causasse prejuízos sensíveis”.

Em 1970 foi assinado convênio entre as estatais de energia elétrica de Brasil e Paraguai para estudo de viabilidade do desvio do rio Paraná para construção da barragem da hidrelétrica. Segundo a Argentina, como lembra Doratioto em relação à decisão de Brasil e de Paraguai de construir uma hidrelétrica bilateral, “a altura da barragem da represa brasileiro-paraguaia, ao alterar as características do curso das águas do rio Paraná, determinaria as características da geração de energia por Corpus Christi e Yacyretá, hidrelétrica que a Argentina resolveu construir no rio Paraná”.

Também segundo Doratioto, “em 1971, na Conferência da Bacia do Prata, em Assunção, a Argentina deu um ‘faux pas maiúsculo e inexplicável’. Do ponto de vista argentino, ao aprovar a Declaração sobre o Aproveitamento de Rios Internacionais, o uso de rios contíguos de ‘soberania compartilhada’ exigia o acordo prévio dos estados ribeirinhos. A declaração estabelecia, contudo, que, no caso de rios de curso sucessivo, por não ser a soberania compartilhada, cada país poderia explorar suas águas desde que não causasse ‘prejuízo sensível’ a outro Estado da Bacia do Prata. Por essa distinção entre rios de curso internacional, Brasil e Paraguai não tinham que consultar a Argentina na exploração de seus recursos fluviais. Esse foi o argumento de Direito Internacional que os governos brasileiro e paraguaio citaram, nos anos seguintes, em favor de suas posições. Mário Gibson Barboza, que se tornara ministro das Relações Exteriores do governo Médici, comentou que ele próprio não escreveria um texto, ‘que mais atendesse aos nossos interesses’”. Barboza escreve ainda que “a Declaração de Assunção, aprovada por unanimidade pelos países da Bacia do Prata, em 3 de junho de 1971, passou, daí em diante, a constituir a mais forte e inviolável proteção do Brasil contra as objeções da Argentina à construção da hidrelétrica brasileiro-paraguaia”. Ainda em 1971, os países assinaram dois acordos que continham linguagem que induzia a necessidade de consultas sobre transporte transfronteiriço e entre autoridades marítimas.

Doratioto lembra que “a controvérsia em torno da consulta prévia para a construção de Itaipu foi introduzida na ONU em junho de 1972, quando da realização da Conferência sobre o Meio Ambiente Humano (CNUMAH) em Estocolmo. A diplomacia argentina tentou obter da conferência o estabelecimento de regras sobre o uso de recursos naturais compartilhados por mais de um país, que incluíssem o princípio de consulta prévia. Houve, então, um grande enfrentamento entre as diplomacias brasileira e argentina e, no final, o objetivo de Buenos Aires não foi alcançado. Na declaração final da conferência, porém, constou, como recomendação, ao país que explorasse esses recursos, que comunicasse ao outro, com o qual os compartilhava, o início da exploração muito antes de seu início. Entre os Princípios e Recomendações de Estocolmo, o de número 21 declarava, ambiguamente, que os Estados tanto tinham o direito soberano de explorar seus recursos naturais, de acordo com sua própria política ambientalista, quanto tinham o dever de fazê-lo de modo a não causar prejuízo ao meio ambiente de outros países”. Durante visita do general Lanusse, os países buscaram ampliar o campo de negociações, em tentativa malograda. A frustração com Itaipu foi tamanha que levou o governo de Lanusse a aproximar-se de regimes populistas como Peru e Bolívia, e mesmo do socialista chileno Salvador Allende e de Cuba. Apenas em 1973, seria firmado o Tratado de Itaipu, e seria aprovado o estatuto da Itaipu Binacional.

Durante a AGNU de 1972, os chanceleres Gibson Barboza e Eduardo McLoughlin realizaram encontro bilateral que viabilizou um acordo: o Brasil informaria – não consultaria – previamente a Argentina sobre o projeto de usina binacional. Os dois países também apoiaram a Resolução 2995 da AGNU. O “Acordo Nova York” será criticado por integrantes do próprio governo Lanusse e pela opinão pública e, nos anos seguintes, por Héctor Cámpora e pelo próprio Perón.