Contexto geral da política externa de Dutra

O contexto internacional do pós-guerra foi importante condicionante da política externa do governo Dutra. Internamente, chegava ao fim a “Era Vargas”, durante a qual a política externa brasileira transigiu gradativamente da chamada “equidistância pragmática” para um alinhamento à posição norte-americana, à medida que a guerra se aproximava do continente e os Estados Unidos (EUA) se envolviam de forma direta no conflito. Esse movimento se deu por meio de negociações intensas, que envolveram, entre outros, a instalação da siderúrgica em Volta Redonda, o reequipamento das Forças Armadas e o envio da Força Expedicionária Brasileira ao teatro europeu de guerra. Nesse contexto, a partir de 1944, a diplomacia pátria alimentou o projeto de manutenção da supremacia militar do Brasil na América Latina e sua escolha para um dos assentos permanentes no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), que tomava forma à época. Esses objetivos levariam o Brasil a manter posição alinhada aos EUA, na busca de dividendos políticos e econômicos.

Em 1945, contudo, o poder de barganha do Brasil decresceu abruptamente. A conjuntura de fim da guerra redefiniu arranjos de poder e interesses estratégicos das grandes potências, enquanto o Brasil perdia a importância econômica, política e militar de que gozara até então junto os EUA. A estabilidade do regime Vargas deixava também de ser um elemento de importância para a política norte-americana no continente, de modo que os desenvolvimentos políticos internos levaram à restauração da liberdade de organização política (Lei Agamenon) e o surgimento de partidos políticos: a União Democrática Nacional (UDN), o Partido Social Democrático (PSD), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), além da reemergência do Partido Comunista Brasileiro (PCB), até então na clandestinidade. Com a queda de Vargas, terminava-se o ciclo autoritário e, com a eleição de Dutra, iniciava-se a chamada República Liberal, que seria marcada por uma crescente polarização entre setores “associacionistas” e nacionalistas.

A política externa do governo Dutra, em seus traços mais aparentes, era uma continuação dos últimos anos do período Vargas (o novo ministro das Relações Exteriores, João Neves da Fontoura, por exemplo, mantinha relação próxima com o ex-presidente e seria chanceler nos dois primeiros anos de seu próximo governo). Desde o início, o governo Dutra acreditava em uma relação especial com o Ocidente e via no alinhamento estreito aos EUA uma forma de proteção em eventual conflito global. Esse alinhamento conferiria ao Brasil a manutenção de posição militar única na região, além de participação ativa nos diálogos de paz e no estabelecimento da nova ordem internacional. De início, as formulações oficiais da política externa brasileira punham ênfase em dois temas gerais: a amizade e colaboração com todas as nações do continente americano e a colaboração com todas as nações democráticas de modo a consolidar a paz mundial. A tradução prática dessa concepção foi enunciada por João Neves da Fontoura ao representante do presidente Truman na posse de Dutra: “O Brasil seguirá a política exterior dos EUA”.

Deve-se salientar que, apesar das visíveis similaridades de abordagem, a implementação do alinhamento aos EUA por Dutra diferiu substancialmente de Vargas. Enquanto em Vargas o alinhamento foi tomado como instrumento da política externa brasileira, em Dutra ele se tornaria, na prática, o próprio objetivo da política, tanto em termos bilaterais quanto em multilaterais. Além disso, com a redemocratização, o processo decisório passou por mudanças, como a retomada da supervisão do Legislativo sobre a política externa, reduzindo-se a “personalização” do processo, o que era reforçado pela saída de nomes fortes, como Oswaldo Aranha e o próprio Getúlio, e pelo menor interesse de Dutra por política internacional. Assim, as decisões voltaram a ser conduzidas pelo Itamaraty, à época influenciado por perspectivas liberais e preocupações de ordem jurídica, que levariam a uma clara política pró-Ocidente e pró-EUA.

A política externa de Dutra como precursora das políticas externas de Café Filho e de Castello Branco

A política externa brasileira durante o governo de Eurico Gaspar Dutra terá elementos de continuidade em administrações posteriores, especialmente as de Café Filho e de Castello Branco. Entre os elementos comuns na política externa dos três períodos, está a tentativa (ao menos em parte do período no caso de Dutra) de reconhecer o Brasil como parte do subsistema de poder norte-americano em termos geopolíticos em um contexto bipolar (Leste-Oeste), buscar maior alinhamento com os EUA (interdependência) e reduzir o escopo de estratégias de inserção internacional calcadas na matriz nacional-desenvolvimentista em favor de abordagem mais liberal.

Nos três períodos, o Brasil também exerceu mandato no CSNU, onde teve posições próximas às dos EUA, como também teria em votações na Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU). Ajudam a explicar essas proximidades o fato de que Raul Fernandes foi o chanceler nos dois primeiros governos e foi filiado à UDN, como também fora antes da extinção do partido o segundo chanceler de Castello Branco, Juracy Magalhães. A base de apoio da UDN era formada pelas classes médias urbanas e por setores da elite vinculados ao capital estrangeiro internacional.

Para outros aspectos de continuidade, ver a seção sobre a política externa de Castello Branco deste capítulo.

Relações com os Estados Unidos

O objetivo da política externa brasileira durante o governo Dutra era a manutenção das relações privilegiadas com os EUA, com a afirmação da posição especial do País. Por essa razão, embora houvesse apoio às iniciativas de caráter multilateral, os melhores esforços da diplomacia pátria eram dedicados a Washington[1]. A visão brasileira da relação bilateral se fundamentava na convicção do caráter único da contribuição brasileira aos Aliados, em comparação com os demais latino-americanos, o que teria dado aos EUA obrigações morais para com o Brasil – mas as condições para a repetição da barganha do período Vargas não mais existiam. Ao passo que o Brasil buscava a segurança econômica, os EUA focavam a manutenção da segurança via contenção da ameaça comunista, concentrando esforços na Europa (Plano Marshall) e na Ásia (Plano Colombo).

No campo militar, em 1946, foram estabelecidos programas de reorganização, com o início das conversações para a criação da Escola Superior de Guerra (ESG), segundo o modelo do National War College, sendo finalmente estabelecida em 1949. As bases dos projetos militares do Brasil no pós-guerra seguiam a convicção de que o mundo estava dividido em dois blocos e que, embora não fosse uma nação militarista, o Brasil tinha potencial para auxiliar os EUA de modo eficiente em uma eventual guerra. As posições quanto à Argentina destoavam: o Brasil tinha a intenção de limitar o acesso argentino a armas e equipamentos, ao passo que os EUA defendiam e colocavam em prática o fornecimento equilibrado de armas às nações sul-americanas. Foi firmado, em 1946, acordo bilateral de aviação civil e rediscutido o Acordo Aéreo Militar de 1944[2].

No campo econômico, para o governo Truman, os EUA não deveriam conceder empréstimos para financiamento de grandes projetos de desenvolvimento na América Latina – o desenvolvimento da região dependeria da criação de condições favoráveis ao investimento estrangeiro privado em setores como matérias-primas. Em 1946, missão econômica brasileira fracassa na busca de financiamento para infraestrutura de transportes e, no ano seguinte, os EUA negam empréstimo para construção de uma refinaria de petróleo no Brasil – evidenciava-se que a assistência para a construção da siderúrgica de Volta Redonda era exceção na política econômica dos EUA, relacionada às condições impostas pela guerra. Assim, no pós-guerra, os EUA reafirmaram interesse pela produção de matérias-primas brasileiras, sobretudo petróleo e minerais estratégicos, e insistiam na liberdade de ação para o capital estrangeiro interessado nessas áreas – o que influenciou até mesmo a Constituinte que definiria a Carta de 1946, cujo texto permitiria a concessão da exploração de recursos do solo e do subsolo a companhias estabelecidas no Brasil. Quanto às areias monazíticas, em 1947, os EUA buscaram renovar acordo firmado em 1945, mas, a despeito da recusa de Dutra em assinar novo acordo, a exportação seguiu por vias administrativas.

Como resultado da percepção da insatisfação brasileira (no que foi caracterizado como “alinhamento sem recompensa” por Gerson Moura), os EUA enviaram, em 1948, a missão econômica para avaliar a situação econômica brasileira: a Missão Técnica Conjunta Brasil-EUA, também conhecida como Missão Abbink. Seu principal objetivo era analisar fatores que promovem ou retardam o desenvolvimento brasileiro, com atenção a: recursos naturais e de capital; mão-de-obra disponível; problemas fiscais e bancários; problemas relativos ao comércio interno e internacional; posição do Brasil na economia mundial. A Missão também deveria apontar medidas para encorajar investimentos privados no Brasil. Tendo trabalhado em 1948 ao lado de especialistas brasileiros, resultou em relatório final, entregue em fevereiro de 1949, que apontou a necessidade de mobilizar e reorientar recursos internos, de implementar medidas ortodoxas para combate à inflação e de remover óbices legais à entrada do capital norte-americano. Em suma, espelhou a política da administração Truman para a América Latina. Também em 1949, o Brasil seria incluído em programa de assistência técnica dos EUA, o Plano Truman (Ponto IV). Esse plano, porém, além de não contemplar a possibilidade de investimentos públicos ou empréstimos nos moldes do Plano Marshall, dirigia-se particularmente a países africanos e asiáticos, buscando explorar matérias-primas.

Também em decorrência da insatisfação brasileira, o governo dos EUA convidaria Dutra para uma visita aos EUA. Na primeira visita oficial de um chefe de Estado brasileiro ao país, em maio de 1949, não houve nenhum avanço significativo, com a apresentação de uma “convenção sobre desenvolvimento econômico” que, na verdade, era uma adaptação de documento firmado anteriormente com a Costa Rica. Anunciou-se a implementação futura das recomendações da Missão Abbink e houve a promessa da assinatura de convênios sobre tributação e garantia de investimentos. Como a visita de Dutra não produziu os resultados financeiros desejados (Washington concedeu ao Brasil apenas US$ 46 milhões em créditos do Eximbank naquele ano) cresceu o ressentimento brasileiro. Em janeiro de 1950, Raul Fernandes enviou a Herschel Johnson o chamado “memorando da frustração”, no qual expressava a “maior apreensão” quanto à concorrência africana e, mais uma vez, acusava Washington de ignorar o Brasil. Os EUA responderiam em maio, de forma insatisfatória. Ademais, após a Argentina de Perón obter um empréstimo de US$ 125 milhões, quase o mesmo montante recebido pelo Brasil durante todo o governo Dutra, as relações chegariam a um patamar preocupante.

No final do governo Dutra, em 1950, foi criada a Comissão Mista Bilateral Brasil-EUA (CMBEU), que entraria em operação efetiva apenas no governo Vargas. O acordo que criou a CMBEU foi finalizado por meio de troca de notas diplomáticas: o Brasil aderiu formalmente ao programa do Ponto IV por meio de um Acordo Geral de Cooperação Técnica (1950) e depois firmou o acordo subsidiário que constituiu a CMBEU. O objetivo primordial era o de elaborar projetos de infraestrutura de acordo com as exigências técnicas do Banco Mundial e do Eximbank. Os projetos prioritários focavam em transportes (especialmente ferrovias), no reaparelhamento e ampliação de portos, no aumento da oferta e distribuição de energia elétrica e na capacidade de armazenamento de produtos agrícolas.

O Brasil e a configuração do sistema interamericano do pós-guerra

No âmbito das relações interamericanas, o processo de configuração do novo sistema regional remete à Conferência de Chapultepec, no primeiro trimestre de 1945. O objetivo da conferência era estabelecer a posição dos latino-americanos na nova ordem internacional. O único país da região ausente foi a Argentina[3]. A despeito da posição de grande parte dos países latino-americanos, que defendiam uma abordagem regional para questões relativas à segurança internacional, os EUA conseguiram a aprovação para as decisões tomadas pelas potências em Dumbarton Oaks, que resultariam na Organização das Nações Unidas (ONU). A Ata de Chapultepec incorporou inovadora declaração de defesa mútua contra agressão externa, marco inicial do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (1947) e que também seria reproduzida no Tratado da Organização do Atlântico Norte (1949).

Na reforma do sistema interamericano, parte central de sua política externa para a América Latina, Washington buscava: consolidar uma frente antirrussa; eliminar centros de propaganda antiamericana; e organizar politicamente a defesa do hemisfério. Nesse contexto, a ênfase para a região estaria na questão da “defesa hemisférica”, o que articulava o plano regional com o plano internacional da política externa dos EUA. Apesar dos atritos políticos entre EUA e Argentina, houve alto grau de formalização do sistema interamericano nos três anos que se seguiram ao fim guerra, com participação do governo brasileiro. No imediato pós-guerra, os esforços militares de coordenação se deram por meio de acordos bilaterais entre os países do hemisfério. No início de 1946, buscou-se reunião interamericana no Rio de Janeiro para criação de uma agência militar, mas a falta de consenso sobre a situação da Argentina fez com que a reunião fosse confirmada apenas em meados de 1947, com a melhora das relações entre Buenos Aires e Washington. A Conferência Interamericana do Rio de Janeiro ocorreu em agosto e setembro de 1947, no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, onde se acordou o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), de assistência recíproca em caso de agressão.