Conceito de Ordem e de Ordem Internacional para Hedley Bull

Hedley Bull associa o termo “ordem” à ideia de coisas que estão relacionadas entre si de acordo com uma certa estrutura e cuja relação recíproca não é fruto puramente do acaso, mas contém algum princípio discernível. Segundo Bull, “ordem internacional significa um padrão de atividade que sustenta os objetivos elementares ou primários da sociedade dos estados, ou sociedade internacional”, mesmo que em um sistema internacional anárquico.

Bull também diferencia os conceitos de “sistema internacional” (“quando dois ou mais estados têm suficiente contato entre si, com suficiente impacto recíproco nas suas decisões, de tal forma que se conduzam, pelo menos até certo ponto, como partes de um todo”) e de “sociedade internacional” (“quando um grupo de estados, conscientes de certos valores e interesses comuns, formam uma sociedade, no sentido de se considerarem ligados, no seu relacionamento, por um conjunto comum de regras, e participam de instituições comuns”).

Ainda para o autor, os objetivos básicos da ordem internacional seriam a preservação do próprio sistema e da sociedade de estados, a manutenção da independência ou da soberania externa dos Estados individuais e a manutenção da paz, além dos objetivos gerais a toda vida social: a limitação da violência que resulte na morte ou em dano corporal, o cumprimento das promessas e a estabilidade da posse mediante a adoção de regras que regulem a propriedade.

Bull fala ainda de “ordem mundial” (“os padrões ou disposições da atividade humana que sustentam os objetivos elementares ou primários da vida social na humanidade considerada em seu conjunto”, com base no reconhecimento de que “a ordem mundial poderia, em princípio, ser alcançada por outras modalidades de organização política universal” que não o sistema de Estados).

Ordem internacional liberal contemporânea

A partir da análise da Escola Inglesa, conclui-se que a ordem internacional liberal é um padrão de atividades que emergiu em determinado momento temporal para dar sustentação aos objetivos da sociedade internacional. Muito embora tenha raízes anteriores, pode-se adotar dois diferentes pontos de partida para a atual ordem internacional liberal.

Para John Mearsheimer, uma ordem pode ser considerada internacional se incluir todas as grandes potências existentes. A partir dessa definição, a existência de uma ordem verdadeiramente internacional no pós-Segunda Guerra Mundial pode ser questionada, porque, embora a União Soviética (URSS) – e outros países do bloco soviético – seja fundadora da Organização das Nações unidas (ONU), não se integrará a diversas outras instituições até o fim da Guerra Fria. Por outro lado, as “potências inimigas” e os países recém-independentes durante o processo de descolonização afro-asiáticas vão sendo gradativamente incorporados àquela organização, reforçando-lhe o caráter universal. Mearsheimer considera, contudo, que o pós-Segunda Guerra Mundial originou uma nova ordem internacional realista (o período anterior já seria realista, mas em bases multipolares), limitada em escopo (a ONU seria seu grande exemplo) e marcada pela bipolaridade, em que cada um dos polos liderava ordens circunscritas também realistas. A Guerra Fria seria o ponto de transição para uma ordem internacional liberal.

Mais em linha com John Ikenberry, pode-se, por outro lado, apontar que, desde o pós-Segunda Guerra Mundial, já estaria em consolidação a atual ordem internacional liberal, tendo em conta que muitos dos princípios que a balizam já estavam ali sendo gestados e já estariam refletidos inclusive na ONU. Essa ordem liberal passaria por diferentes fases de maturação, tendo a Guerra Fria (e talvez o fim do padrão Bretton Woods antes dela) como um dos pontos de mudança.

A ordem internacional do pós-Segunda Guerra Mundial (e do pós-Guerra Fria) está baseada na institucionalização da segurança coletiva (como já ocorrera no fim da Primeira Guerra Mundial, o que, somado ao fato de que o Conselho de Segurança – CSNU – é composto por cinco membros permanentes e potências nucleares, dá algum elemento realista à ordem) e na proscrição da guerra (exceto nos casos de legítima defesa individual ou coletiva ou ação autorizada pelo CSNU). Dão-lhe sustentação um conjunto de valores e de princípios compartilhados pela sociedade internacional associados ao liberalismo, especialmente político, em um primeiro momento (em que se destacam valores e princípios como igualdade soberana e não intervenção, democracia e Estado de direito, promoção e proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, respeito ao Direito Internacional), passando paulatinamente a abarcar o escopo econômico (com a erosão do Estado de bem-estar social e o fortalecimento do neoliberalismo e da promoção do livre comércio em nível multilateral e regional).

O “padrão de atividades” dessa ordem internacional do pós-Segunda Guerra Mundial tem, como algumas de suas características, a proliferação de organizações internacionais, a dominância democrático-liberal atlântica em sua estruturação e as particularidades do cenário de Guerra Fria. Se considerar que a ordem internacional já é liberal desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o primeiro momento de transição acontece nos anos 1970, em razão do fim do padrão de Bretton Woods e do que John Ruggie chamou embedded liberalism (o liberalismo que conjuga a promoção da abertura de mercados e do livre comércio internacional com a manutenção de estados de bem-estar social domesticamente), que resultará na expansão do liberalismo, em sua perspectiva econômica, também para o interior das unidades do sistema.

A segunda (ou primeira) transição significativa é o fim da Guerra Fria, que promoverá uma “nova ordem mundial”, ou uma ordem verdadeiramente internacional (a ordem do “Fim da História” de Fukuyama), que nada mais foi do que a expansão em nível de fato global da ordem liberal (seja internacional, seja a circunscrita na zona de influência da Ocidente) do pós-Segunda Guerra Mundial, por meio da universalização das instituições, de regimes (com a proliferação de novos temas, acompanhada de novas organizações internacionais), do livre comércio e do livre mercado (Consenso de Washington) e da democracia liberal, com base na lógica de promoção da paz sustentada pelos liberais e baseada no tripé institucionalismo liberal, interdependência econômica e paz democrática. Para Mearsheimer, esse movimento de universalização (a exportação dos valores do Estado hegemônico) não poderá perpetuar-se indefinidamente, tendo em conta a efemeridade de ordens que se baseiam em elementos “ideológicos” (“any ideological international order based on a universalistic ideology, such as liberalism or communism, is destined to have a short life span, mainly because of the domestic and global difficulties that arise when the unipole seeks to remake the world in its own image. Nationalism and balance of power politics work to undermine the requisite social engineering in countries targeted for regime change, while nationalism also creates significant problems on the home front for the sole pole and its ideological allies. (…) An ideological order can also come to an end in a second way. New great powers could emerge, which would undermine unipolarity and lead to either a bipolar or a multipolar system. In that event, the ideological order would be replaced by bounded and international realist orders.”). Essa debilidade se revela no fracasso da “exportação” do modelo democrático-liberal para algumas regiões do globo, em especial o Oriente Médio ou, em certa medida, a Rússia e a China atuais, e também na emergência de novos polos de poder atualmente.

Transformações recentes na ordem internacional liberal

Entre as evidências de que a ordem internacional tem passado por transformações nas últimas duas décadas, destaca-se uma série de episódios que impactam o funcionamento do sistema internacional e atuam como forças centrífugas ao padrão de atividades previamente estabelecido ou aos princípios e valores sustentados pela ordem. Entre eles, o que Mearsheimer chamou “hiperglobalização” (a expansão descontrolada da globalização econômica, que teria resultado na perda de empregos, na redução de salários e no aumento da desigualdade de renda, provocando a erosão do apoio popular à ordem liberal); a eclosão da crise financeira global de 2008-2009; o retraimento do internacionalismo pós-Guerra Fria dos Estados Unidos (EUA); o enfraquecimento e a redução em termos quantitativos do número de democracias liberais; o fortalecimento do nacionalismo em detrimento do internacionalismo e do multilateralismo; a emergência de novas dinâmicas de terrorismo e extremismo violento; e os impasses no sistema multilateral de comércio. Como eventos centrífugos específicos, podem ser destacados o Brexit, a política externa norte-americana do governo Trump (retirada de algumas organizações e tratados internacionais, maior protecionismo comercial) ou o fortalecimento de partidos e políticos nacionalistas ou populistas em diferentes países.

De maneira particular, é importante reconhecer, entre as transformações, a mudança do eixo geopolítico e geoeconômico global para a Ásia-Pacífico e o fortalecimento em geral de países emergentes. Nesse sentido, destacam-se, quanto ao eixo Ásia-Pacífico, a ascensão (por que não reascensão após o século de humilhações?) da China, o renascimento da Rússia, a posição já tradicional ocupada pelo Japão, o desenvolvimento da Coreia do Sul, a ameaça nuclear da Coreia do Norte, a importância da Índia, o crescimento dos países da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN, na sigla em inglês) e a decisão da administração de Barack Obama de promover um pivô para aquela região. Quanto ao fortalecimento em geral de países emergentes, pode-se mencionar em termos econômicos, políticos e geopolíticos a ocupação de mais espaços no sistema internacional por países como Brasil, Turquia e México. Exemplos concretos dessas transformações estruturais estariam nas reformas recentes no sistema internacional, como as quotas no Fundo Monatário Internacional (FMI), e o estabelecimento de uma série de novos agrupamentos ou organizações internacionais, de caráter político, econômico ou de cooperação, centrados em países em desenvolvimento, como é o caso do BRICS ou do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII). Tais transformações, até o momento, não implodiram os valores e princípios que fundamentam a atual ordem internacional, de modo que se costumou classificar o movimento dos países emergentes (ou re-emergentes) de “revisionismo soft”.

Ainda como parte da análise sobre as transformações pela qual a ordem internacional liberal tem passado nas últimas duas décadas, é imprescindível refletir sobre as transformações na polaridade do sistema, com a consolidação da UE e com a emergência e a re-emergência de potências regionais. Para informações adicionais a respeito, ver a subseção f da seção 1.1.III deste tomo, sobre transição de poder.

Impactos da pandemia de COVID-19 sobre a ordem internacional liberal

A pandemia de COVID-19 impactou de diferentes maneiras a ordem internacional liberal. Em termos econômicos, em primeiro lugar, destaca-se a forte crise econômica provocada em termos internacionais, embora com efeitos distintos em cada região ou país, sem que se possa identificar padrão parecido com os impactos da crise financeira global de 2008-2009. Tais efeitos distintos estariam relacionados com diversos fatores, como as medidas de resposta à pandemia e o grau de imposição de restrições às circulações, a intensidade dos impactos da pandemia sobre a economia e a sociedade e seu grau de resiliência, o ritmo de crescimento econômico pregresso e o impacto dessincronizado da pandemia nos diversos continentes e em suas economias, afetando inicialmente mais a Ásia e depois espalhando-se pela Europa, América e África. Políticas de recuperação econômica, de maneira geral, buscaram fortalecer o papel do Estado na economia, o que tendeu a provocar inflação e aumento do endividamento público. A crise econômica também tem ampliado o endividamento externo da quase totalidade dos países, muitos dos quais ampliaram seu endividamento junto à China em razão da dependência diante de investimentos chineses realizados nos últimos anos. Estratégias de recuperação igualmente vêm buscando sustentar-se em discursos que conciliem maior resiliência a crises futuras e sustentabilidade (“recuperação verde”). A pandemia tem provocado discussões sobre um eventual movimento de desglobalização ou de reglobalização, em especial pelas preocupações despertadas quanto à dependência externa e a alta integração a cadeias globais de valor. Discute-se, igualmente, o recurso ao nearshoring e ao onshoring, isto é, reduzir a amplitude geográfica das cadeias de valor ou concentrar novamente todo o processo produtivo em uma única localidade, para evitar que evento disruptivo distante do centro de tomada de decisões afete toda a cadeia, assim como a necessidade de diversificação de origens dos insumos e produtos importados.

Entre outros efeitos econômico-sociais importantes para a ordem internacional, destacam-se: 1) a digitalização de processos e do trabalho aprofunda o gap de exclusão digital entre os países e dentro deles; 2) no que tange à segurança alimentar, a pandemia não teve impactos tão negativos como a da crise de alimentos da década passada, mas a eclosão do conflito na Ucrânia tem provocado preços recordes nos alimentos, escassez de fertilizantes e aumento dos níveis de insegurança alimentar ; 3) a desaceleração das economias com a pandemia impactou, por sua vez, a demanda e por conseguinte o preço da energia (petróleo), os quais também foram afetados pela recuperação econômica pós-pandemia e, principalmente, pelo conflito na Ucrânia ; 4) em termos comerciais, a OMC chegou a prever que, em um cenário pessimista, os fluxos comerciais poderiam reduzir-se em até 32%, mas, na realidade, a queda não foi superior a 6% no primeiro ano de pandemia; 5) a disseminação da prática de restrições às exportações, em especial de produtos e equipamentos médicos, consolidando um “nacionalismo de vacinas”, concorreu com fenômenos como a “diplomacia das máscaras” exercida pela China e a “diplomacia das vacinas”, pela China, Índia e mais recente pelos EUA; 6) dificuldades na produção e na distribuição de vacinas, remédios e tratamentos provocaram discussão sobre o papel da propriedade intelectual na saúde pública e no provimento de alegados bens públicos globais.