Dilema de Taiwan

Taiwan é considerada pela China continental como uma província, segundo a política de “uma só China”, que é determinante para que não haja países que reconheçam tanto a República Popular da China (RPC) como Taiwan – ou, formalmente, a República da China (ROC, na sigla em inglês) – como dois Estados diferentes e independentes. Taiwan mantém representação independente, seja como membro pleno, seja como observador, em algumas organizações internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Banco Asiático de Desenvolvimento (BAD), o Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC, na sigla em inglês) e comitês da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), embora seja bloqueado pela China em outras – o recente caso de obstrução na Organização Mundial da Saúde (OMS) ficou bastante em evidência durante a pandemia de COVID-19.

A atual presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, coloca seu país no epicentro de uma luta ideológica entre democracias liberais e regimes autoritários, que ameaçam a ordem liberal construída no pós-guerra. A mandatária afirma o compromisso inegociável dos taiwaneses com a democracia (rechaçando uma eventual unificação entre ROC e RPC), mas também que seu governo não será “aventureiro” – referência a uma eventual declaração de independência, que seria a linha vermelha para uma intervenção chinesa sobre a ilha. Pesquisa de opinião realizada em setembro de 2023 revela que 49% dos taiwaneses apoiam a independência formal da Chima, enquanto 27% desejam a manutenção do statu quo e 11% preferem a unificação com a China. Na faixa etária entre 20 e 44 anos, o apoio à independência é majoritário na ilha.

Em janeiro de 2024, foram realizadas eleições presidenciais em Taiwan. O Partido Democrático Progressista (DPP, na sigla em inglês) escolheu o atual vice-presidente do país, ex-primeiro-ministro e defensor da independência taiwanesa, William Lai Ching-te, como candidato, que se sagrou vencedor com pouco mais de 40% dos votos válidos. Em Taiwan, a maioria simples é suficiente para chegar-se ao vencedor, mas foi a primeira vez, desde o início das eleições democráticas no país, em 1996, que o presidente eleito não obtém a maioria dos votos. A posse será realizada em maio. Analistas consideram que Lai cumprirá mandato-tampão até que Tsai possa voltar ao cargo, em 2028.

Lai derrotou uma oposição dividida. Em novembro de 2023, os dois principais partidos de oposição, o Kuomintang (KMT), de Hou Yu-ih, e o Partido Popular de Taiwan, de Ko Wen-je, que apoiam maior diálogo com a China, anunciaram que lançariam chapa única para enfrentá-lo. O acordo fracassou após trocas públicas de acusações dias depois, de modo que ambos os partidos concorreram em separado no pleito, o que facilitou a nova vitória do DPP. Hou ficou em segundo lugar, com 33,5% dos votos, e Ko, em terceiro, com 26,5%, o que dá um percentual agregado de 60% dos votos. O KMT, no entanto, foi o maior vencedor do pleito legislativo, com 52 cadeiras, contra 51 do DPP, oito do Partido Popular de Taiwan e dois para candidatos independentes.

Importância de Taiwan

Taiwan é ciente da ameaça chinesa e adota todas as formas de defesa que lhe estão disponíveis, desde as estratégias de soft power e de interdependência econômica até o investimento em suas capacidades militares. No âmbito do soft power, segundo Tsai Ing-wen, Taiwan seria democrática, ocidental e um responsible stakeholder, embora influenciada pela civilização chinesa e pelas tradições asiáticas. Por isso, todos os países do campo democrático deveriam reconhecer a importância de Taiwan no conflito ideológico, já que sua queda seria catastrófica para a paz regional e para a arquitetura de segurança asiática.

Taiwan faz parte da “Primeira Cadeia de Ilhas”, que vai do Japão a Bornéu, da estratégia de contenção marítima dos Estados Unidos (EUA) no Pacífico[1]. Sua importância estratégica para a China, portanto, vai além da retórica nacionalista: a posse de Taiwan lhe daria acesso direto ao oceano Pacífico, diminuindo as possibilidades de eventual cerco marítimo pelos EUA e seus aliados. Tal cerco teria respaldo teórico no pensamento geopolítico de Nicholas Spykman, que recomendava a ocupação das franjas marítimas da Eurásia (rimland) pelos EUA, de forma a controlar a massa eurasiática.

Atualmente, a estratégia militar taiwanesa baseia-se na estratégia de dissuasão assimétrica, segundo a qual a ilha reconhece que é incapaz de competir militarmente com a China e deve, portanto, investir em sua capacidade de resistir a uma invasão por meio de armas leves, em grande número e com alta mobilidade, além de ser capaz de manter o controle de suas águas e dos céus. Os EUA apoiam essa abordagem, mas as forças armadas taiwanesas têm buscado aumentar suas capacidades também em termos de armas pesadas. Taiwan vem modernizando suas Forças Armadas – e criou, em 1º de janeiro de 2022, a All-Out Defense Mobilization Agency para manter prontidão dos reservistas. Vem adquirindo armas dos EUA, de quem Taiwan foi o maior cliente nesta categoria de produtos em 2020, e conta com “consultores militares” norte-americanos nos últimos anos. Após a invasão da Ucrânia, aumentou o apoio da população de Taiwan às reformas do serviço militar obrigatório e da força de reservistas, com vistas a melhorar a preparação para situações de combate. Em abril de 2022, o Ministério da Defesa Nacional de Taiwan publicou um manual explicando os procedimentos que seus cidadãos devem seguir, em caso de guerra. No fim de setembro de 2023, Taiwan apresentou o Narwhal, o primeiro dos oito submarinos que está construindo domesticamente para tentar garantir sua autonomia diante das ameaças da RPC. Ademais, o governo de Tsai Ing-wen mantém a preocupação de governos anteriores com a segurança cibernética do país. Desde pelo menos o ano de 2000, Taiwan vem implementando grupos de estudos, criando departamentos e divisões governamentais e estruturando políticas de segurança cibernética, das quais destacam-se o Departamento de Cibersegurança (2016), o Centro Nacional de Comunicação e Cibersegurança (2018) e a Lei de Gestão da Cibersegurança (2018) e seu regulamento (2021). A preocupação taiwanesa justifica-se pelos mais de dez mil ciberataques que recebe por dia.

Há também a importância econômica de Taiwan no que tange não apenas às cadeias globais de valor, mas também à própria China. A ilha é responsável pela produção de mais da metade dos semicondutores do mundo, notadamente os tipos mais avançados, perfazendo o chamado “escudo de silício”. Os investimentos taiwaneses na China somaram US$ 188,5 bilhões entre 1991 e março de 2020, e o comércio bilateral responde por 42% de todas as exportações e 22% de todas as importações de Taiwan. As relações humanas entre as duas entidades não são nada desprezíveis. Mais de 2,5 milhões de turistas chineses visitaram a ilha em 2019, e um número crescente de jovens da China continental estudam em Taiwan, chegando a 30,5 mil estudantes em 2020[2]. A relevância econômica e tecnológica de Taiwan atende a uma dupla função. Ao mesmo tempo que serve de elemento de dissuasão em relação à China, devido aos eventuais prejuízos econômicos que uma solução militar causaria, serve também de argumento para que seus aliados estejam mais inclinados a virem ao seu socorro em caso de invasão.

Pode-se identificar, a partir do milagre taiwanês das décadas de 1960 e 1970, que a ilha busca ativamente manter-se economicamente relevante, utilizando o vanguardismo tecnológico como principal ferramenta dessa estratégia. Essa postura fica evidente, em 1980, com a criação do parque científico de Hsinchu, com a implementação dos “dez grandes projetos de construção” e com investimento maciço em pesquisa e desenvolvimento. O governo Tsai Ing-wen mantém a política industrial de inovação das administrações anteriores. A presidente Ing-wen vem promovendo dois planos estratégicos. O primeiro é o Plano “5+2 indústrias inovadoras”, que busca estimular as áreas de máquinas inteligentes, Vale do Silício asiático, energia verde, biomedicina, defesa nacional, aeroespacial, nova agricultura e economia circular. O segundo são as “seis indústrias estratégicas de base”: tecnologia digital e da informação, cibersegurança, tecnologias médicas, saúde de precisão, energia verdes renováveis, defesa nacional, e indústrias estratégicas. Para manter-se na vanguarda da tecnologia, Taiwan investe na formação e manutenção do seu capital humano, além de estimular a relocalização de indústria estratégicas para a ilha de Formosa. O reconhecimento da importância do “escudo de silício” fica evidente na proteção física que o Ministério da Justiça fornece aos engenheiros do setor de semicondutores.

RPC e a reunificação

Pequim afirma que Taiwan está vinculada a um entendimento conhecido como “Consenso de 1992”, que foi alcançado entre representantes do Partido Comunista da China (PCCh) e do KMT. Os dois lados, entretanto, não concordam com o entendimento do conteúdo do referido consenso. Para a RPC, como afirmou Xi, o Consenso de 1992 reflete um acordo de que “os dois lados do estreito pertencem a uma China e trabalharão juntos para buscar a reunificação nacional”. Para o KMT, significa “uma China, interpretações diferentes”, com a ROC sendo a “única China”. A constituição redigida por Taiwan continua a reconhecer a China continental, a Mongólia, o Tibete e o mar do Sul da China como parte da ROC. O KMT não apoia a independência de Taiwan e tem constantemente buscado laços mais estreitos com Pequim.

O DPP, da atual presidente Tsai Ing-wen, tem orientação liberal, tanto em termos sociais (agenda de direitos humanos e de meio ambiente), quanto em termos econômicos, controla o Parlamento taiwanês desde 2016, é rival do KMT e é contrário ao Consenso de 1992. O partido já havia chegado ao poder na ilha entre 2000 e 2008, com Chen Shui-bian, que acabou preso em 2009, por corrupção.

Nas últimas décadas, a China vinha perseguindo uma política de reunificação pacífica, sem determinar um prazo para tanto, mediante o adensamento de laços econômicos, culturais e sociais com Taiwan. Sob o presidente Ma Ying-jeou (KMT), que esteve no cargo de 2008 a 2016, Taiwan assinou mais de vinte pactos com a RPC, incluindo o Acordo-Quadro de Cooperação Econômica Transversal (2010), pelo qual concordaram em reduzir barreiras ao comércio. RPC e ROC retomaram ligações diretas de mar, ar e correio, que haviam sido banidas por décadas, e também concordaram em permitir que bancos, seguradoras e outros provedores de serviços financeiros trabalhassem em ambos os mercados.

As perspectivas de uma reunificação pacífica, entretanto, vêm diminuindo há alguns anos. O rompimento dos canais de comunicação diplomáticos entre a China e Taiwan, desde 2016 (quando Tsai Ing-wen foi eleita pela primeira vez), exacerba os riscos de uma escalada bélica. Em junho de 2020, a Nova Lei de Segurança Nacional para Hong Kong desacreditou a fórmula “um país, dois sistemas”, que deveria fornecer um modelo atraente para a unificação pacífica. Em abril de 2023, o chanceler de Taiwan afirmou em entrevista que a China deverá tentar a reunificação até 2027, com base em fontes da inteligência estadunidense.

Cada vez menos taiwaneses se veem como chineses[3], e menos ainda almejam uma reunificação, o que é ratificado pela reeleição, em janeiro de 2020, de Tsai Ing-wen, favorável a um distanciamento da China. Entretanto, nas eleições locais de novembro de 2022, o DPP teve sua pior performance eleitoral em sua história e foi derrotado pelo KMT, em um claro sinal de que o lema “resista à China e defenda Taiwan” tem aceitação limitada entre a população, preocupada com outras questões domésticas, como a poluição em Tiachung e a compra de vacinas. Após o episódio, Tsai Ing-wen renunciou à liderança do DPP, embora siga presidente de Taiwan até maio de 2024, por não poder concorrer a outro mandato consecutivo.

Em termos comerciais, a ROC ainda é muito dependente da RPC. Tsai tem tentado diversificar as relações comerciais de Taiwan, com resultados mistos: teve algum sucesso impulsionando o comércio e o investimento por meio da New Southbound Policy (2016). A iniciativa, em conexão com o Free and Open Indo-Pacific, busca aproximar Taiwan de 18 parceiros: países da ASEAN (Tailândia, Indonésia, Filipinas, Malásia, Singapura, Brunei, Vietnã, Myanmar, Camboja e Laos); da Ásia Meridional (Índia, Paquistão, Bangladesh, Nepal, Sri Lanka e Butão); além de Austrália e Nova Zelândia. Tsai também formulou um plano para incentivar os fabricantes taiwaneses a se mudarem do continente de volta para Taiwan. Ainda assim, as exportações de Taiwan para a RPC atingiram o recorde de todos os tempos em 2021 – a RPC é o maior parceiro comercial de Taiwan (42% das exportações, incluindo Hong Kong) e o maior destino do investimento estrangeiro direto (IED) taiwanês.

A questão taiwanesa continua a ser fulcral para a RPC. A Lei Antissecessão (2005) compromete Pequim a trabalhar para a “unificação pacífica” com Taiwan, mas afirma que, em caso de “secessão”, “o Estado empregará meios não pacíficos e outras medidas necessárias para proteger a soberania e a integridade territorial da China”.